quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Vivendo Para Morrer

(Paulo Roberto)

Eu só escuto o barulho intrincado do motor.
Som sem ritmo, violento e banal.
A chuva lava o que deveria ser meu arsenal pessoal.
Mas não é... Não, não é.

Eu não queria estar voando aqui, agora, padre.
Eu não queria estar matando essa gente.
Pouco me importa o que eles pregam em seus templos criados.
Pouco me importa o que querem com ele.

Não tenho fé e não consigo mais olhar para baixo.
Ver cidades inteiras estupradas pelas chamas.
Eu não preciso fazer parte do teu fim.
Não preciso. Não preciso...

Você pediu para que eu fosse mais um de seus homens cegos.
Homem honrado, de serventia ao país.
Mas para mim a honra não se mede pela morte.
Integridade que não tenha moral.
Eu só te peço, por favor, me deixe ir embora.
Minha família não pode esperar.
Tenho crianças, Oh, Senhor, você pode esperar?
Ah, não pode... Não, não pode.

O som das bombas me desperta, me fuzila e grita
Dentro de mim o coração não bate.
Eu estou morto mas meu corpo ainda tira vidas.
1,83 de músculos e ossos sem valor.

Não posso mais adiar a morte e o fim desta terra.
Não posso mais lutar contra meus princípios.
Se não matar, morro cedo e sem meus últimos ritos.
Tenho medo de viver só para morrer.

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Sou acordado pela sirene.
O combate por terra começará.
A dança entre balas e mísseis,
Os olhos do demônio os fazendo queimar.
Correria dentro do galpão iluminado.
O desespero impregnado ao som da marcha seca.
Eles estão saindo vivos e com esperança.
...Os que voltarem virão apenas vivos.

Estou deitado, quieto e gelado.
Lembrando de teu belo sorriso.
A risada das crianças toma minha mente,
O teu perfume me carrega para longe.
A imagem do teu corpo me devora.
Preciso fugir deste inferno.
Dormir de novo em minha cama.
...Pisar no chão que paguei para ter.

Mais uma vez as bombas gritam e os corpos voam,
E dessa vez outra sirene soa.
É minha vez de correr "livre" pelo ar envolto,
Nuvens manchadas por sangue ocidental.

Em seu discurso você pede pela paz e brinca
"Caros irmãos, teremos a paz em breve!"
Eu fecho os olhos toda vez que entro em minha cabine,
Pedindo a Deus o perdão pelo que farei.

Motor ligado, vamos lá... Apenas nós, meu anjo.
Leve minhas preces aos ouvidos do Pai.

"Me proteja e me guie pelo caminho certo,
Não deixe a tentação me tomar.
Afaste todos os demônios que estiverem próximos.
Afaste a escuridão ao meu redor.
Que reine a luz enquanto eu mando pobres almas virgens
Para o inferno ou para teu lar sagrado."

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Eu posso ver sangue na água.
Orla estuprada pelo sol.
Sol que morre além dos mares
Lambendo ossos que rolam pelo chão.

Eu posso ver o rio de fogo.
O céu laranja, limpo em vão.
Estupro nuclear, radiação.
Poeira grossa, campos em pedra.

Faço o sinal da cruz.
Ultimo rito antes de pecar.
Mais uma bomba, mais um rasante.
Cogumelo engolindo o "Thunderbird"
Oh, Pai, o que é isso?
Eu me sinto estranho e limpo.
Aquela luz veio para me salvar?
Não existe mais barulho,
Não há fogo, não há vulto.
Tu é quieto, tudo é como no inicio.

Agora estou além dos homens,
Com os pés para cima.
Uma xícara de chá,
É o bastante...
As crianças no jardim
Dora quieta, chorando por mim.
Oh, meu amor, não me culpe pela morte.

Deus está do meu lado,
Eu matei e fui julgado,
Mas a justiça não se guia pela razão.
Um coral de belos anjos,
Cicatrizes cobertas pelo manto,
Obrigado, Oh, Meu Deus, pelo perdão.

Meu corpo foi queimado,
Pobre corpo dilacerado.
Nuvem morta deixou apenas a dor.
Enferrujados, mísseis ocos.
Tão vazios quanto o amor que ostenta pela pátria que governa.
Deixe-me dormir, caro Chefe.
Hoje não precisamos de continência.
É, aqui todos nós somos iguais.

Durma bem, caro amigo louco.
Que teus sonhos sejam malditos.
Que as almas voltem para te cobrar.