quinta-feira, 14 de julho de 2011

Dora

(Paulo Roberto)

Era fim de tarde, o frio estava querendo invadir os prados e eriçar os pelos dos animais. As corujas já estavam vigiando a entrada do bosque e as cobras estavam amaciando a grama. Os preás correndo loucamente em busca de comida enquanto a montanha pairava assustadoramente quieta. Tuba, a pequena rata, jamais teve coragem de subir além da 6ª rocha. Algumas lendas rondavam a montanha. Ali em cima, eram poucos os animais. Raposas, lobos, tigres, veados... Todos mais fortes, maiores e, sem dúvida, mais famintos. Qualquer coisa quente que pudesse explodir na boca e dar prazer com o sabor de nervos e ossos sendo retorcidos era válido. O fato é que, na verdade, todos os lindos animais que viviam ali tinham medo d'O Lobo. Ele era o único animal que descia das montanhas para buscar comida (Os outros apenas saciavam a sede no lago do outro lado do vale). Mesmo no rigoroso inverno, em que as pradarias rochosas se tornavam vastos campos invisíveis, os animais ficavam todos por lá. Famintos, sedentos, malditos. Mas ele, ele não. Não tinha orgulho. Era um bicho que sempre tinha a fera entre as garras, a besta entre as presas e a visão do inferno no olhar. Os pelos eram negros como os lábios da noite, macios como a carne do oráculo e fediam como abutres dissecados. Estava dormindo. Sonhava com um dragão. Esse sempre foi o único medo d'O Lobo. Não suportava a ideia de que alguém poderia ser mais forte e mais temido. No fim das contas ele só queria amor. Só queria amar... só queria poder amar. O coração estava cheio de dor e quase não batia. Apenas um lapso de “auto-compaixão” o deixava vivo. Estava respirando devagar. O ar da noite era seu preferido.

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Imagine, por favor, o barulho de um casulo explodindo. Agora, ajeite-se, sente-se confortavelmente e imagine uma linda borboleta azul voando perto de você. Imagine que o cheiro agora é o melhor do mundo. Imagine que um abraço te envolve enquanto tuas dores são extintas. Imagine Sarah. Suas asas eram lindas. Sabia que tinha pouquíssimo tempo de vida e não queria ser como todas as outras borboletas. Tinha algo a fazer ali. Voou alto. Muito alto. No meio de sua subida, sorriu. Avistou uma jovem raposa. Era fabulosa! Algo ali exalava alegria, o semblante despreocupado era fascinante! Brincava com folhas secas que alcançavam voo a cada pulo. Era tão bobo...
É difícil definir Dora. Extremamente difícil. A primeira vista, parecia mais uma raposa. Mais uma entre as tantas. Não era grande, não era assustadora e muito menos perigosa. Era simplesmente apaixonante. Era como uma rosa vermelha cheia de vida entre os lírios secos, surrados pelo tempo e abandonados por Deus. Era a luz que mais brilhava entre os vaga-lumes. Sarah apenas admirava. Quando ainda rastejava, ouviu todas as estórias malditas sobre O Lobo. Sabia que algo tinha de mudar para que o medo não fosse tão constante e que o receio não fosse o sentimento que mais abraçava os animais. Dora não era apenas um pedaço de carne, uma raposa exposta ou uma presa fácil para qualquer bicho maior. Dora era, em sua visão, a salvação do mundo. Ou de seu mundo, pelo menos.

O fato é que, se você tivesse apenas mais algumas horas de vida, o que faria?

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Uivou. Era incomum fazer isso pela manhã, mas o sol lhe energizava. Queria apenas lembrar aos ouvintes que o seu reinado era intocável. Esgueirou-se para uma fenda estreita onde jaziam os restos de um veado. Ainda tinha carne, seria a primeira refeição do dia.
A bocarra se cansou de morder, então O Lobo resolveu se deleitar com o medo nas feições das criaturas inferiores a ele. Metro por metro, foi descendo calmamente a montanha. As nuvens eram atravessadas com um certo ar jovial. Não sabia exatamente o motivo, mas sempre foi apaixonado pelas nuvens. Elas faziam o coração bater, assim como a Lua. Pena que não podia atravessar a Lua... Estava longe.

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Dora estagnou. Ouviu o urro da besta. Sarah farfalhou as asas e continuou calma, não havia motivos para pânico.

- Borboletas não devem ter um sabor tão bom, né?
- Você também ouviu? - Disse Dora com os olhos molhados
- Sim, acalme-se. Ele não fará nada contra você...
- ...e como sabe... erm... qual o seu nome mesmo?
- Sarah, minha cara raposa.
- Dora! Meu nome é Dora! - Incrível o que a inocência evoca numa raposa– O que faz aqui, tão alto? As borboletas não sobem tanto! Eu nunca vi uma por aqui!
- Vim procurar a salvação. Não para mim, não para nós... Mas para todos.
- Oi? - Disse virando o pescoço para a esquerda.
- Deixe-me explicar. Você, Dora... Você é especial. Basta observá-la por um tempo e olhar mais a fundo do que os olhos podem ver. Além dos pelos avermelhados, além do focinho negro e das orelhas. Dentro de toda essa pele, além dos músculos, além das veias e ossos, existe um coração pequenino e puro. Um coração que pode fazer grandes coisas em grandes bichos. Um coração que, dentro d'O Lobo, pode mudar tudo.

A perplexidade nos olhos de Dora era notável. Do que raios aquela linda borboleta falava? Sentia-se estranha. Como se o chão de pedra estivesse sumido e estivesse agora sobre o Éden. Sentia-se forte, o medo não existia como antes.

- Consegue me explicar melhor?
- Desça.
- Descer...?
- Desça a montanha, brinque com os ratos, corra com as lebres, dance com os macacos e role com as cobras. Todos temem o que há aqui em cima, mas você pode dar a eles a segurança e a paz que precisam! Se todos os animais descerem, o que será d'O Lobo? Apenas um animal morto por seu próprio rancor.

A inocência brilhou e ela aceitou o convite. Morria de curiosidade para conhecer aquela parte do mundo. Não sabia como era o bosque, só conhecia o outro lado da fenda. O lago azul era tudo que tinha visto da parte baixa da vida. Era estranho começar a descer pelo outro lado. Rochas enormes estavam pelo caminho. Só então notou o quão alto era o seu lar. Via algumas árvores, uma mar de verde. Uma cor diferente aqui, outra ali... Rosa e amarelo para quebrar a monotonia de toda aquela paisagem surreal e desconhecida por ela. Conseguiu contar, por auto, umas vinte rochas gigantescas por todo o caminho. Passou por vários animais, os guepardos urravam loucamente, incrédulos do que estavam vendo. Uma raposa, tão bela, tão pequena, tão frágil... Estava quebrando barreiras, estava alterando o ciclo, estava quebrando as regras. Faltava pouco. Sentiu o cheiro das frutas, ouviu os chocalhos das serpentes e se apaixonou pela melodia do cantos dos rouxinóis. Finalmente, tocou a grama. Finalmente conheceu o Éden.

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Alvoroço. Os animais estavam desnorteados, não sabiam mais o que fazer. Dora estava lá em baixo! As raposas começaram a uivar, um choro desesperado e confuso. Os bichos estavam correndo em círculos, não sabiam que caminho tomar. Em meio a urros e grunhidos desesperados, uma das raposas mais velhas decidiu descer. O semblante animalesco de todos os animais não existia. Estavam todos receosos e confusos. Numa marcha lenta e desencorajada, decidiram seguir. Decidiram descer, decidiram enfrentar A Besta, decidiram enfrentar a morte e todos os medos que acompanharam suas almas durante toda a vida. Era hora de lutar pela liberdade.

Enquanto isso, Dora estava maravilhada. Aquele era o melhor ambiente que já tinha visto. Os animais eram livres, os cheiros se misturavam e a leveza do ar apenas limpavam a alma. Eram tantos bichos, tantas plantas, tantas vidas, tanta luz, tantos sons... Barulho. Num súbito reflexo olhou para cima. Uma sombra horripilante se aproximava. Era como se todos os habitantes do alto da montanha estivessem descendo. Sarah sorriu. Tinha conseguido! Os olhos assustados e brilhantes eram bonitos de se ver. Tinham um brilho diferente. Um a um, tocaram o solo fofo. As raposas correram para pular em Dora. Era uma festa. Todos as outras especies começaram a olhar em volta. Que mundo era aquele? Era tudo tão belo! Começaram a se espalhar. Um a um, adentrando a mata, observando animais que, até então, eram estranhos. Em meio a brados de satisfação e sensação de liberdade, Sarah notou o espectro da Besta. O arrepio percorreu as entranhas de todos que olharam para cima. O cheiro de morte inundando o olfato, a visão do Inferno.

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Sentia-se bem. Havia algo errado. O silêncio lhe assustava, mas... por algum motivo, sentia-se diferente aquela manhã. Era como se o coração fizesse o mesmo som que fizera a muitos anos. Aquele som doce, ritmado e contínuo. Sentia o coração bater, sentia um arrepio a cada passo. Os pensamentos vagavam pelo lago, memórias de sua parceira morta por veneno e teimosia.
Estagnou. Não podia crer. Agora sim, sentia o coração lutar contra o peito. Estava com medo.
Olhou nos olhos de cada um, viu medo e coragem numa mescla de confusões. Ele estava confuso, estava com medo, estava incrédulo.

- O que fazem aqui? - Mesmo abalado, urrou como um trovão – Vocês sabem das regras, vocês sabem das MINHAS regras. Respondam, amigos. O que estão fazendo aqui?
- Olhe a sua volta, caro amigo. Você é um de nós. Não é nada além disso, Lobo! - Disse Sarah com sua voz aguda e calma – Tudo o que você diz ter, nós também temos!

Aquiesceu. Com lágrimas nos olhos, mas ainda firme, urrou para o mundo. Dora aproximou-se rapidamente. Nunca tinha visto O Lobo. A curiosidade maldita da pequena raposa lhe drenava a paz.
- Eu protejo vocês de todas as dores. Eu protejo vocês de todas as maldições dessa parte do vale. Minha parceira morreu aqui, enquanto todos esses bichos ridículos brincavam durante o verão. A dor que eu senti... Ninguém mais vai sentir. Lá em cima estão seguros. Não existem mosquitos do inferno, não existem aranhas e poucas são as cobras que se aventuram tão alto. E, lembrem-se, elas não possuem veneno. Aqui todo tipo de bicho maldito e peçonhento pode percorrer os corpos dos teus filhotes, os corpos de vocês! Fora que existem humanos aqui perto. Aquela maldita raça... A escolha é de vocês! Eu venho, como e volto. Façam o que tiverem de fazer. Nunca precisei de vocês. No fim das contas são vocês que precisam de mim.

Quando se preparava para seguir, ouviu-se um “Obrigado, Lobo”. O animal virou-se perplexo. Dora aproximou-se novamente.
- Obrigado. Apesar de tudo... suas intenções sempre foram boas. Mas não deixe de viver por isso. Não deixe de viver por medo. Você sempre se mostrou tão forte! Não viva isolado do mundo, longe dos outros lobos, dos outros animais... Longe da Vida! Fique conosco! Seja parte da grande família que somos. Seja parte do coletivo! Junto de todos você estará muito mais protegidos e nós teremos confiança para seguir progredindo. Veja, eu não sou uma raposa muito forte, muito grande ou nada disso. Mas eu consigo olhar pra você e ver que algo está faltando. Falta uma família. Falta amizade, falta amor! Lobo, você não precisa ser ruim, você não precisa comandar todas as espécies, você só precisa viver! Olha pra mim! Eu sou pequena, não me preocupo com nada e sou feliz! Você deveria viver mais e sofrer menos. Fique e nós o ajudaremos!

Lágrimas, dor, arrependimento, solidão, confusão... Tudo junto. O Lobo não sabia o que dizer. Só sabia que não voltaria para o alto da montanha. Sua casa não ficava além das nuvens. Tudo estava começando a ficar diferente. Conseguia enxergar as cores, conseguia ouvir o coração, conseguia apaziguar a alma. Bendita Dora. As palavras ditas ardiam no peito. A cada letra, um aperto. Era como um banho de culpa, o golpe de misericórdia.
- Eu fico. Eu fico!
Todos os animais bradaram, era como uma vitória sobre o arque inimigo. Agora eles poderiam ser livres e com a presença da Fera. Tinham até um certo carinho por ele... Afinal de contas, tudo fazia sentido. Dora mostrou ao mundo que foi um erro nobre. A intenção era a melhor possível. A execução, a pior. O perdão faz parte da vida, recomeçar as vezes é a melhor saída... E lá estava Sarah...

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O véu da noite estava sobre os ombros do céu. A Lua era cheia e poucas nuvens vigiavam o vale. Estavam todos dormindo. Sarah levantou voo. As asas pararam de responder, a respiração falhou e a brisa lhe soprou aos ouvidos a marcha fúnebre da vida. O manto da morte lhe cobriu, seu corpo inerte desabou sobre a terra. A chuva caiu.
Havia conseguido tudo. Dora mudou o mundo. Ou pelo menos... Seu mundo. A paz governará esta terra sem reis enquanto Dora manter o espírito. Não se trata de aparência, é puro sentimento. Pura fé. Você só precisa de você.

...E o que faria se tivesse apenas algumas horas de vida?